Por Nelson
Ernesto Coelho Jr.
RESUMO
Este
artigo tem por objetivo situar e discutir as definições e o estatuto da noção
de objeto na teoria psicanalítica de Freud. Será caracterizada a principal
concepção freudiana que postula as pulsões como aspecto originário da
constituição da subjetividade e os objetos como aspectos secundários. Mas será
evidenciada também outra posição possível de ser derivada de Freud, que
considera os objetos como determinantes originários na constituição da
subjetividade. Será enfatizado que uma das riquezas epistemológicas da psicanálise
está na dupla posição com relação ao estatuto do objeto.
Palavras-chave:
psicanálise freudiana, objeto, pulsão e sujeito.
INTRODUÇÃO
Este
texto tem por objetivo situar e discutir as definições e o estatuto da noção de
objeto na teoria psicanalítica de Freud. Além deste objetivo, busca formular
indicações para se conceber a articulação sujeito/objeto a partir da obra
freudiana. Postulo que a compreensão da concepção de objeto na teoria freudiana
é elemento decisivo na definição da concepção de sujeito, como aliás já foi
sugerido, entre outros, por Merea (1994). Embora Freud não tenha explicitado
uma concepção de sujeito em sua teoria, parece ser possível sugerir que as
diferentes acepções que o termo objeto adquire no decorrer de sua obra são
determinantes para uma possível definição do que viria a ser o sujeito na
teoria psicanalítica freudiana. Entendo que a discussão desse tema é de
fundamental importância no momento em que emerge com força renovada a
proposição de uma teoria e uma prática psicanalítica intersubjetiva, em
oposição à tradicional perspectiva intrapsíquica.1 Afinal, o objeto para Freud
deve ser entendido sempre como um objeto psíquico ou é também um objeto real,
externo? Quando os defensores de uma psicanálise intersubjetiva referem-se a
objetos e a sujeitos, essas referências devem ser entendidas em termos de
"entidades concretas", ou em termos de representações psíquicas, ou
ainda, nos dois níveis simultaneamente?
Procurarei,
de início, caracterizar a concepção metapsicológica que postula as pulsões como
aspecto originário da constituição da subjetividade e os objetos apenas como
aspecto secundário. Trata-se da posição sobre a noção de objeto que pode ser
considerada predominante na obra de Freud. Por este viés, a noção de objeto
aparece basicamente de dois modos: ligada à noção de pulsão — neste caso os
objetos são correlatos das pulsões, são os objetos das pulsões; e ligada à
atração e ao amor/ódio, quando então são os objetos correlatos do amor e do
ódio.
Mas
procurarei mostrar também que é possível derivar de Freud (como sugere
BERCHERIE, 1988) uma outra posição metapsicológica que influenciou boa parte
dos teóricos da psicanálise pós-freudiana, como Lacan e Winnicott: aquela que
considera os objetos como determinantes originários na constituição da
subjetividade. Aqui encontramos a evolução do pensamento freudiano a partir do
texto Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci (FREUD, 1910), com destaque
ainda para Introdução ao narcisismo (FREUD, 1914) e, principalmente, Luto e
melancolia (FREUD,1917/1972) em que a concepção de "objetos de
identificação" torna-se fundamental na constituição do sujeito, em
particular através da noção de identificação primária.
OS
DIVERSOS USOS DA NOÇÃO DE OBJETO EM FREUD
O
complexo uso que faz Freud da noção de objeto em suas formulações teóricas
exige que tratemos com máxima cautela a proposta de uma apresentação
sistemática e "enciclopédica" dos termos e definições estabelecidos
no decorrer de uma obra muito vasta, escrita em um período de mais de quarenta
anos. André Green, em texto recente, chegou a afirmar que o objeto para Freud é
"polissêmico, existe sempre mais que um objeto e, como um todo, eles
cobrem vários campos e realizam funções que não podem ser abarcadas por um só
conceito"(GREEN, 2000, p. 9). Assim como acontece com outras noções
centrais do ponto de vista epistemológico,2 também com relação à noção de
objeto Freud não chegou a estabelecer uma definição única e final em termos
conceituais. Utilizando-se dos recursos próprios da língua alemã para a
formação de palavras, Freud apresenta em suas obras uma série de noções que
anunciam a riqueza e a variedade do uso do objeto na construção de sua teoria.
Assim, encontramos, numa lista não exaustiva, noções como Objektwahl (escolha
de objeto), Determinierung des Objectwahl (determinação da escolha de objeto),
Identifizierung als Vorstufe der Objektwahl (identificação como grau elementar
da escolha de objeto), infantile Objektwahl (escolha de objeto infantil),
inzestuöse Objektwahl (escolha de objeto incestuosa), homossexuele Objektwahl
(escolha de objeto homossexual), Anlehnungstypus der Objektwahl (escolha
anaclítica de objeto), narzissistische Objektwahl (escolha narcísica de
objeto), Objektfindung (encontro do objeto), Objektbesetzung (investimento de
objeto), Objekt-Libido (objeto de libido), Objekttriebe (objeto de pulsões),
Objektliebe (objeto de amor), Objektwechsel (troca de objeto), Objektwerbung
(recrutamento do objeto), Objektverzicht (renúncia do objeto), Objektverlust
(perda do objeto), Objektvermeidung (ato de evitar o objeto) e Mutterbrust als
erstes Objekt (seio materno como primeiro objeto).
A
partir desses conceitos podemos reconhecer muitos dos temas centrais da teoria
psicanalítica de Freud e a forma como a noção de objeto participa da construção
do conjunto teórico. Como um primeiro ponto seria preciso destacar a relação
entre a sexualidade, ou melhor, as moções da pulsão sexual, suas
"ações", e os objetos. Em geral, Freud se refere a objetos que são na
realidade representações psíquicas. Assim, o movimento a que se refere a moção
pulsional deve ser considerado um movimento interno ao psiquismo. A seguir,
seria necessário destacar a expressão "escolha de objeto", que se
refere, em geral, à escolha de objetos de amor. Como bem expressam Laplanche &
Pontalis (1967) o termo "escolha" não deve ser considerado em seu
sentido racional, de uma opção consciente, mas sim como o que há de
irreversível, na eleição feita pelo indivíduo, do seu tipo de objeto de amor. A
escolha pode se referir a uma pessoa específica que é eleita como objeto de
amor, ou a tipos de escolha, como quando Freud se refere, por exemplo, à
"escolha de objeto incestuosa", ou "escolha de objeto
homossexual". Há ainda a referência ao próprio sujeito, ou mais
precisamente, ao ego como instância psíquica, que pode ser tomado como objeto,
como no caso dos investimentos narcísicos. Mas, para Freud (1914/1972),
escolhas narcísicas de objeto, embora exercidas a partir do modelo estabelecido
da relação do sujeito consigo mesmo, caracterizam-se também por escolhas de
outros objetos que representem de alguma forma o próprio sujeito ou algum de
seus aspectos. Freud partiu de sua observação da experiência psíquica de
indivíduos homossexuais que escolheriam seu objeto de amor tomando a si mesmos
como modelo. Em oposição a este tipo de escolha, Freud propôs o que ele
denominou "escolhas anaclíticas de objeto". Nesses casos, o objeto de
amor é escolhido a partir do modelo das primeiras relações objetais, em geral
as relações com os pais.
Em
sua primeira teoria das pulsões, Freud propõe que as pulsões sexuais se apoiam
originalmente sobre as pulsões de autoconservação. Assim, as escolhas
anaclíticas de objeto estariam se estabelecendo a partir do modelo de relação
presente nos primeiros momentos de vida, em que a satisfação sexual se apoiaria
sobre objetos responsáveis pela conservação da vida, ou seja, principalmente
sobre o seio materno. Daí outro uso do objeto na formulação teórica de Freud,
aquele que estabelece que o seio materno é o primeiro objeto sexual: "Em
um tempo em que o início da satisfação sexual ainda está vinculado ao
recebimento de alimentos, a pulsão sexual encontra o objeto sexual fora do
corpo da criança, na forma do seio materno"(FREUD, 1905/1972, p.125). De fato,
para Freud, o primeiro objeto será o modelo para as futuras relações objetais:
"Existem, portanto, boas razões para que o ato de uma criança sugar o seio
da mãe se torne o protótipo para toda relação de amor. Encontrar um objeto (die
Objektfindung) é na realidade reencontrá-lo" (FREUD, 1905/1972,
p.125-126). Essa é uma frase muito citada e talvez a mais reconhecida entre as
passagens da obra freudiana em que há uma referência à noção de objeto.
Embora
Freud fizesse inicialmente uma clara diferenciação entre a sexualidade infantil
e a sexualidade posterior ao período da puberdade, já fica claro nessa passagem
uma das principais características da teoria psicanalítica, ou seja, que
processos psíquicos infantis, tanto em sua dimensão de ação como de afeto e
representação, tendem a ser o modelo para as relações adultas. Outro aspecto a
ser ressaltado a partir dessa citação de Freud é a complexidade da experiência
temporal, nos termos em que é compreendida pela psicanálise. Se inegavelmente
há uma linha regressiva, em que o passado explica o presente (as escolhas
objetais passadas explicam as escolhas atuais ou posteriores), há também o
caminho inverso, em que só as experiências posteriores podem fazer com que as
passadas ganhem sentido, ganhem significado. Essa última forma de compreender a
temporalidade, como se sabe, foi denominada por Freud de Nachträglichkeit (posterioridade).
No
texto de 1914, "Introdução ao narcisismo", Freud retomará o tema das
escolhas objetais, propondo um resumo, que por sua importância, reproduzirei na
íntegra:
"Ama-se:
(1)
A partir do tipo narcísico:
a) o
que se é (a própria pessoa),
b) o
que se foi,
c) o
que se gostaria de ser,
d)
alguém que foi parte da própria pessoa.
(2)
A partir do tipo anaclítico:
a) a
mulher que alimenta,
b) o
homem que protege, e a sucessão de pessoas substitutivas que venham a ocupar o
seu lugar." (FREUD, 1914/1972, p. 56-57)
Através
dessa sequência, é possível apreender os caminhos que Freud antevia para cada
sujeito em suas escolhas de objeto amorosas. Mais uma vez fica claro o quanto
as experiências amorosas infantis determinam as experiências posteriores. E,
como aponta Merea, "fica evidente que na escolha de objeto escolhe-se
sempre com base no modelo que é ao mesmo tempo constitutivo do sujeito (e portanto
também narcisista) e externo (e portanto anaclítico...). Desta perspectiva, não
se torna tão cortante a distinção entre os dois modos de escolha de objeto,
exceto em suas possibilidades de combinação, de extraordinária riqueza. (MAREA,
1994, p. 8-9).
Mas
fica claro também que tanto os movimentos que buscam no objeto externo a
realização de um desejo, como aqueles que buscam no próprio sujeito essa
realização, partem de marcas estabelecidas no psiquismo e de seus registros
afetivos e representacionais. Ou seja, os estímulos, ou se quisermos, os
"convites" que partem do mundo externo serão sempre secundários nessa
concepção. Não há aqui nenhum poder de constituição do sujeito atribuído aos
objetos enquanto fonte primária. A fonte primária das ações e escolhas será
sempre algo "interno" ao próprio sujeito, ou melhor, o próprio
movimento pulsional. Mas, ao menos potencialmente, no movimento da escolha de
objeto, o sujeito entra em contato com a diferença, e assim percebe, ainda que
parcialmente, a existência de um outro, de um não-ego.
É
só a partir do momento em que Freud passa a valorizar os objetos de
identificação, que esse modelo poderá ser modificado. Já no texto de 1910, Uma
lembrança infantil de Leonardo da Vinci (FREUD, 1910), pode ser verificado o movimento
de Freud em direção ao reconhecimento dos processos de identificação para a
constituição da subjetividade. Ao procurar compreender a homossexualidade a
partir das concepções psicanalíticas, sugere que o menino tende a recalcar seu
amor pela mãe e, ao assim proceder, coloca-se em seu lugar, identifica-se com
ela e acaba por tomar-se a si mesmo por modelo para seus novos objetos de amor.
Encontramos assim, já nesse texto, importantes formulações sobre a
identificação e o narcisismo. Mas é no texto de 1917, Luto e melancolia, que a
noção de identificação tomará corpo. O que se apresenta nesse texto é que em
função da perda de um objeto que pode ser real ou mesmo fantasiada, o sujeito
passa a viver uma identificação do objeto perdido com seu próprio ego.
Embora
Freud trabalhe ainda predominantemente com a concepção do objeto como sendo
endopsíquico, nesse momento de sua obra começa a se esboçar a ideia da
introjeção do objeto, através da identificação (principalmente da identificação
primária), como elemento central na constituição da subjetividade. Freud passa
pouco a pouco a considerar o ego como um precipitado de identificações, em que
o modelo fundamental é a figura paterna. As identificações, como se sabe,
ocorrem desde o início da vida, e vão preparando o caminho para o Complexo de
Édipo, pedra angular da constituição da subjetividade para Freud.
A
identificação do menino com o pai pode servir aqui como exemplo: há, no início,
ao mesmo tempo o desejo sexual pela mãe e a identificação com o pai. Na medida
em que ocorre a necessidade de uma unificação da experiência psíquica, estes
dois aspectos tendem a se fundir, dando origem ao Complexo de Édipo. É nesse
momento que o pai passa a ser claramente um rival e a identificação pode
adquirir um caráter hostil, que inclui movimentos de incorporação (querer ser
como o pai) e substituição (querer ocupar o lugar do pai). Vale lembrar que o
objeto incorporado (como também ocorre na relação objetal inaugural do bebê com
o seio da mãe) não é da ordem do observável, já que é o objeto do desejo
sexual, para o qual não há um correlato externo observável. Embora exista a
referência a um objeto externo (seio da mãe, o pai, etc.) não há nenhuma
garantia de que o objeto visado pelo desejo sexual e incorporado psiquicamente,
seja o objeto externo real. Incorpora-se, em última instância, uma relação que
passa a produzir efeitos na cadeia de fantasias inconscientes. Freud postula,
nesses termos, a constituição da subjetividade como um processo de sucessivas
identificações. Os objetos vão sendo substituídos e o sucesso ou o fracasso nas
substituições será determinante na formação de sintomas ou do equilíbrio e das
possibilidades criativas de cada sujeito.
Se
retomarmos o caso específico da melancolia, estudado por Freud no texto de
1917, poderemos verificar que a principal dificuldade está justamente na
impossibilidade de substituição do objeto de amor. Mesmo que o teste de
realidade comprove para a instância egóica a ausência do objeto na realidade
exterior, no plano das fantasias e dos devaneios o objeto perdido mantém-se presente.
Ou como sugere Pollock:
"...
fantasias e devaneios com relação ao finado objeto podem interferir no trabalho
de luto e, em instâncias em que o objeto morto não pode ser apreciado
realisticamente, o objeto continua a existir como um objeto introjetado
inassimilável, com o qual conversações internas podem ser mantidas."
(POLLOCK, 1994, p.155).
A
tensão caracterizada pela ausência do objeto externo, acompanhado da presença
psíquica do objeto é fonte de grande sofrimento. O exemplo da melancolia é
elucidativo de uma das formas com que o objeto aparece na teorização freudiana.
A simultaneidade entre presença e ausência, a impossibilidade de uma parcela do
psiquismo em reconhecer a perda do objeto, insistindo em sua presença psíquica,
evidencia a complexidade da noção de objeto em uma teoria que procura
justamente ultrapassar os limites da objetividade.
Ao
lado disso, entendo ser importante sublinhar a ambiguidade presente na
concepção freudiana do objeto a partir da formulação das identificações como
elemento constituinte dos processos de subjetivação. Pode-se reconhecer o
esforço de Freud em não estabelecer uma presença apenas empírica dos objetos.
Por outro lado, seria errôneo supor que Freud negue a realidade dos objetos
externos ou mesmo sua importância na constituição da subjetividade. Não há, em
Freud, a pretensão de que a representação psíquica do seio materno, por
exemplo, possa ter se formado sem que existisse um seio materno "empírico".
O objeto seria simultaneamente empírico e psíquico. É deste modo que a
teorização freudiana acaba por constituir sua especificidade quanto à noção de
objeto. Florence chega a afirmar que "a psicologia se refere a objetos da
objetividade. A psicanálise situa-se no nível da objetalidade" (FLORENCE,
1994, p.162). A objetalidade refere-se a uma experiência da identificação que
não se confundiria com a descrição psicológica da imitação. Não há, de fato,
nessa concepção, a possibilidade de um objeto empírico "estável", que
venha a ser imitado. Nas identificações, a ênfase recairia muito mais sobre a
relação entre um sujeito e os objetos, do que nos termos em si, de forma
isolada. Assim, o sujeito criaria seu objeto, da mesma forma que o objeto
criaria o sujeito através de sucessivas relações.
Encontraríamos
aqui o que o filósofo francês Merleau-Ponty (1945, 1964) denomina de processos
de mútua constituição nas relações entre sujeito e objeto. Não há anterioridade
entre sujeito e objeto e também não há mais termos fixos, já constituídos. O
que há é um processo permanente de mútua constituição. Essas são as exigências
reflexivas que as propostas freudianas sobre a identificação acabam por nos
colocar. Nenhuma destas idéias está explicitada na obra freudiana, mas são
idéias a que se chega a partir das exigências colocadas pelos textos de Freud.
Voltarei a isso na conclusão deste artigo.
POSSÍVEIS
ORDENAÇÕES PARA A NOÇÃO DE OBJETO NA PSICANÁLISE FREUDIANA
É
possível estabelecer diferentes ordenações da noção de objeto na obra freudiana
a partir do que já foi exposto. Nenhuma delas é definitiva, mas escolhas
precisam ser feitas se quisermos avançar na compreensão de um pensamento tanto
no que diz respeito a seus acertos quanto a seus erros. É inevitável, nas
tentativas didáticas de ordenação de um conceito em uma obra tão complexa como
a de Freud, algum grau de esquematismo e simplificação. Pretendo correr esse
risco em favor da clareza da exposição e, acreditando que o leitor poderá
avançar, a partir da ordenação proposta, para além dela em direção a uma
re-complexificação mais sistemática do conceito de objeto e da relação
sujeito/objeto na obra freudiana. Assim, uma ordenação possível seria a
seguinte:
O
objeto é objeto da pulsão
Considerando
a teoria pulsional, Freud afirma que constitui-se como objeto da pulsão todo
objeto no qual ou através do qual a pulsão consegue atingir seu alvo. O objeto
não é fixo, nem previamente determinado, é o que há de mais contingente no
conjunto de elementos e processos presentes nos atos pulsionais. O objeto é
variável e indeterminado, mas é o que permite satisfação às pulsões. Os objetos
pulsionais tendem a ser objetos parciais, como por exemplo partes do corpo. Não
precisam ser objetos reais presentes, podem ser objetos fantasiados, o importante
é que sejam objetos que garantam a satisfação. Nesse sentido, o objeto estará
sempre a serviço dos movimentos das pulsões sexuais, tal como Freud as define
em sua primeira teoria das pulsões.
O
objeto é objeto de atração e de amor
Os
objetos de atração e objetos de amor são em geral indivíduos que se articulam
não apenas a relações pulsionais mas sobretudo a relações do ego total com os
objetos. É através dos objetos de amor que Freud (1910/1972) elabora as
passagens de fantasias infantis inconscientes para as experiências na assim
chamada "vida real". Parte-se, na infância, de objetos visados pelas
pulsões parciais para se atingir, posteriormente, objetos totais, visados pelo
ego adulto. É possível apreender, a partir dessa noção de objeto, uma certa
concepção de desenvolvimento psicossexual sugerida por Freud, na passagem de
objetos da pulsão — parciais e pré-genitais, para objetos totais — objetos de
amor e genitais. No entanto, as próprias investigações posteriores de Freud
(1917/1972), e principalmente os trabalhos de Abraham (1924/1980) e Klein
(1932), tornarão essas relações muito mais complexas, envolvendo a experiência
do fetichismo e os processos de incorporação, introjeção e projeção, fazendo
com que a relação com objetos parciais assuma um papel central.
OBJETO
E NARCISISMO. O EGO TORNA-SE OBJETO DA PULSÃO
A
introdução do ego como objeto da pulsão abre espaço para uma grande
transformação na obra freudiana, que culminará com uma nova teoria das pulsões.
A complexidade das relações entre as pulsões e seus objetos recoloca a questão
sobre as formas de vinculação entre os objetos das pulsões sexuais e os objetos
de necessidade, vinculados às pulsões de autoconservação. A própria noção de
prazer e objetos de prazer precisará ser questionada, ao lado da noção de
identificação. E ainda mais, o ego, nos processos narcísicos é definido como um
objeto de amor. Será o ego um objeto de amor como qualquer outro?
Objeto
e identificação
Principalmente
a partir de Luto e melancolia, Freud passa a dar mais ênfase à importância dos
objetos de identificação na constituição do sujeito. Na experiência melancólica
há a introjeção de uma relação ambivalente entre o ego e o objeto, objeto que
nesse caso é inconsciente. A identificação parcial entre o ego e o objeto
"perdido" resulta em um processo de grande destrutividade para o ego,
na medida em que o ego não consegue igualar o objeto introjetado e assim partir
em busca de novos objetos. Freud estabelece também, com clareza, que o objeto
pode ter sua existência no psiquismo mesmo depois de não estar mais presente
como objeto da percepção. As múltiplas dimensões psíquicas e empíricas que se
desdobram a partir da concepção freudiana das identificações têm papel
preponderante nas formulações da noção de objeto de autores pós-freudianos.
Pode-se dizer que o objeto jamais será o mesmo para a psicanálise a partir da
ênfase nas identificações como elemento central na constituição da subjetividade.
Percepção
e objeto. O objeto da percepção é objeto real?
A
formulação sobre o vínculo entre percepção e objeto, presente sobretudo nos
textos iniciais de Freud, apresenta o objeto como sendo por um lado um objeto
externo e real, oferecendo ao sujeito — ou à consciência — o critério de
realidade, e de outro lado como sendo um objeto psíquico e então trata-se
fundamentalmente de representações (Vorstellungen). Nesse plano, Freud não se
distingue de boa parte da tradição psicológica, em que objeto é objeto empírico
e a representação seria uma representação do objeto real externo. A percepção
seria uma função da consciência, ou do ego, que por sua vez deveria ser
definido como sede das funções psicológicas (atenção, cognição, etc.). Mas
Freud (1915/1972 e 1923/1972) introduz uma novidade, em termos de teorias clássicas
da percepção, ao deixar aberta a possibilidade de percepções inconscientes. E
nesta medida permite que se postule o reconhecimento de que nenhuma percepção
garante um acesso objetivo à realidade,3 não cabendo, assim, reconhecimentos
definitivos sobre a objetividade das percepções.
CONCLUSÃO:
SUJEITO E OBJETO SÃO SUPLEMENTARES
Apesar
destas diferentes acepções, podemos considerar que na teoria freudiana, de uma
forma geral, o objeto está sempre ligado ao processo da história de vida do
sujeito, ou seja, se o objeto é determinado por algo, não o é simplesmente por
elementos constitucionais de cada sujeito, mas sim pela história de vida
(fundamentalmente a história de vida infantil). Neste sentido, mesmo a assim
chamada "escolha de objeto" presente na adolescência e na vida
adulta, se não ocorre por acaso, também não pode ser concebida como
completamente determinada, seja constitucionalmente, seja por uma decisão soberana
da consciência ou do ego.
Freud
denominou série complementar a complementaridade de fatores exógenos e
endógenos na etiologia das neuroses. Esta mesma concepção nos parece adequada
para pensar, em um primeiro nível, o estatuto do objeto na teoria freudiana.
Freud se refere a objeto tanto no sentido de um objeto dito "externo"
quanto a um objeto dito "interno". O objeto é simultaneamente interno
e externo. Trata-se de entender as formulações freudianas para além das
tentativas de reduzi-las quer ao empirismo quer ao idealismo. Assim, seria
preciso reconhecer que Freud supõe um sujeito (pulsional) constituindo objetos
e também objetos (de identificação) constituindo o sujeito.
A
partir da trajetória realizada, é possível propor uma concepção freudiana do
sujeito, apesar dos riscos envolvidos. Entendo que o sujeito precisaria ser
pensado como resultado, simultaneamente, da complexa intensidade dos movimentos
pulsionais e das sucessivas identificações (possíveis também graças a uma
presença "ativa" de objetos como a mãe, o pai, etc.) ocorridos em seu
processo constitutivo. A ideia de simultaneidade é aqui fundamental. Não penso
que haja anterioridade das pulsões com relação aos objetos de identificação,
como tampouco me parece possível dizer que os objetos antecedam os movimentos
pulsionais. Seria necessário reconhecer em Freud uma lógica não identitária,
uma lógica da suplementaridade para dar a essa concepção sua formulação mais
rigorosa.
Os
polos da dualidade (pulsão-identificação, interno-externo, psíquico-empírico ou
mesmo sujeito-objeto) não precisam ser pensados como cada um sendo idêntico a
si mesmo. Tampouco bastaria pensar os polos como complementares, o que ainda
manteria certa unidade permanente e definitiva na concepção de cada um dos
elementos complementares, ou então a diluição de cada polo em um novo
"produto" resultante da complementaridade. Entendo que cada um dos polos
traz em si a exigência de suplementação. Ou como sugere Figueiredo, a partir do
filósofo francês Derrida (1973): "...cada polo é sempre um apelo de
suplemento endereçado ao outro, (...) cada polo procura no outro a suplência de
suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos" (FIGUEIREDO,
1999, p. 28).
Ao
propor a lógica da suplementaridade como alternativa à lógica identitária e à
lógica dialética, Figueiredo procura enfatizar uma leitura que valoriza as
tensões internas e as dificuldades próprias da construção da teoria em Freud,
recusando leituras enrijecidas dos conceitos ou a imposição de buscas
apressadas de sínteses evolutivas entre polaridades. Mais do que isso, chega a
propor que "na perspectiva que acredito ser a de Freud, a subjetividade (o
aparelho psíquico) é constituído na e pela lógica da suplementaridade"
(FIGUEIREDO, 1999, p. 29). Outra vez encontramos, neste ponto, as concepções de
Merleau-Ponty e sua noção de uma dialética sem síntese, que ao invés de reunir
polaridades impõe a permanente exigência de um polo a outro, que estarão sempre
em constante dinâmica. Mas isso não implica no estabelecimento de relações
aleatórias entre os polos, ou na relativização de qualquer conhecimento sobre
os processos de constituição da dinâmica:
O
que se deve aqui apontar é que a dialética sem síntese de que falamos não é o
ceticismo, o relativismo vulgar ou o reino do inefável. (...) Em outros termos,
o que excluímos da dialética é a ideia do negativo puro, o que procuramos é uma
definição dialética do ser, que não pode ser nem o ser para si nem o ser em si
— definições rápidas, frágeis e lábeis..." (MERLEAU-PONTY, 1964,
p.129-130).
Seja
através da ideia de suplementaridade ou de uma dialética sem síntese, o que
pretendo expor é a necessária suplementação dinâmica entre as concepções de
sujeito e objeto na obra freudiana. Parti da tentativa de formular as
diferentes concepções de objeto e seus usos nos textos de Freud. Caminhei para
a proposição de possíveis ordenações da noção de objeto em Freud, para chegar a
uma especulação sobre a construção de uma relação sujeito-objeto na obra
freudiana. Várias tentativas de fornecer uma epistemologia confiável ao
trabalho de Freud foram rejeitadas por diversos comentadores, e com razão.4 O
que procurei apresentar neste texto, mais de que uma proposição epistemológica,
foi a proposta de uma leitura de certas noções que acompanham o percurso
realizado por Freud em sua obra, sugerindo algumas balizas que talvez permitam
novos questionamentos e novas "traduções" dos textos freudianos, que
parecem (felizmente) se mostrar irredutíveis a qualquer tentativa de uma
tradução final e definitiva.